quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Morgana teve de partir





Quando Morgana partiu, deixou-me no peito uma dor tamanha, que nenhuma palavra poderá mensurar. 

Foi-se em um feriadão, porque, aconselhei, daria para arrumar a nova casa antes de o novo marido voltar a trabalhar. 

É uma ausência, uma saudade que consome!... 

Mas não me permito desejar que volte: não quero ver despedaçadas as suas mais belas aspirações. 

Por que Morgana teve de partir? 

Quem foi que colocou na cabecinha dela essas tais de “autonomia”, “independência”, “vida própria”? 

Nem bem deixou os cueiros, resolveu “brincar de casamento”. 

Elegeu um estranho, que jamais a conhecerá como eu conheço. Tem “sonhos”, diz... 

Mas por que os filhos não se atêm a sonhar os sonhos da gente? 

Desde quando filho tem de ter “vida própria”? 

Quanto egoísmo o deles, né não? Quanto egoísmo!... 

A gente ama, cuida, enche de carinho, dá tudo do bom e do melhor... 

Mesmo assim, um “belo dia” resolvem nos abandonar em meio a um velório sem defunto. 

É, um velório sem defunto!... 

Não haverá amigo que nos envie condolências; não haverá ninguém que nos diga: “Que pena que ele se foi tão jovem para o casamento!...” 

A perda é nossa – só nossa. E devemos suportá-la sozinhos e em silêncio... 


.......... 

Quando Morgana partiu, fiquei a contemplar seu quarto vazio, com a certeza de que ela nunca, nunca mais voltará!... 

A minha bebezinha, tão pequenina e indefesa, tornou-se uma mulher resolvida, independente, que saberá seguir adiante, ainda que sozinha. 

Nunca mais poderei protegê-la em meus braços, ou conduzi-la pela mão, como fiz tantas vezes. 

Nunca mais poderei telefonar pra dizer-lhe que já é hora de voltar pra casa. 

Nunca mais poderei encher-lhe o saco pra que se alimente. 

Nunca mais poderei torrar-lhe a paciência pra que estude e arrume o quarto. 

Agora, será outro a protegê-la e apoquentar... 

E eu só espero é que eles se apoquentem pelo resto da vida; que vivam até os cem anos nessa perturbação mútua!... 

Tomara que vejam até os bisnetos irem embora, em busca de “vida própria”!... 

Vingancinha de mãe, tá? 

Mas também a certeza que a sua autonomia me dá de que acertei bem mais do que errei... 

E a esperança de que, um dia, eles possam dizer isso também... 

(Ele a amará tanto quanto a amo? Ela o amará mais do que a mim? Mas como estabelecer disputas entre amores? Qual o parâmetro para tantas formas de amar?)

........... 


Dia após dia o vazio daquele quarto foi se agigantando, até engolir a casa, o mundo, a vida. 

Era uma dor na alma, uma aflição. Uma perda de sentido, próprio e de tudo. 

Ah, quanto feijão queimado naqueles dias!... Panelas e mais panelas de arroz sem sal!... Torradas mais repletas de radicais livres do que passeatas do PSTU!... 

(Mas emagrecer que é bom, necas de pitibiriba. Aliás, só  um leso pra imaginar que dor de alma é sinônimo de SPA). 

Finalmente, percebi que precisava ocupar aquele quarto (e a casa, e a vida). 

Transformei-o em escritório e enchi de móveis, livros, papéis. 

Também comecei a preparar minhas refeições com tudo aquilo que sempre amei, mas que Morgana detesta: couve, repolho, abóbora e muita, mas muita carne vermelha. 

Redecorei a sala com mandalas, cristais, cortinas, bibelôs. Enchi o jardim de flores. E, por incrível que pareça para alguém que aos 54 anos nunca demonstrou aptidão para trabalhos manuais, dei até pra fazer artesanato – vejam só!... 

No entanto, o que realmente me ajudou, mais do que qualquer mudança ou terapia, foi essa invenção magnífica chamada celular: 

_Alô, Morgana, estás em casa, querida?
_Não, mãe, eu e o Ví saímos pra comer alguma coisa...
_Mas já é tão tarde, minha filha!... Toma cuidado, coração!... E me liga quando chegares, tá?

E você aí pensando que eu ia ficar só nesse dramalhão pro resto da vida, né?

Falta a minha filha sempre fará, mas ainda tenho a mim mesma e a uma imensidão de sonhos pra sonhar.

No fundo, caro leitor, a vida não passa de uma sucessão de etapas. E o que precisamos é enxergar a profusão de caminhos adiante.

Morgana está bem e eu nunca deixarei de ser sua mãe; nunca deixarei de amá-la e de estar com ela, em tudo o que ela precisar.

Mas o que não posso é viver em torno de um quarto vazio.

Afinal, viver não é só respirar: é voar, e voar, e voar com a habilidade de um beija-flor. É arregalar os olhos e o coração. É, em suma, ousar ser feliz.